Comprei um vestido novo, um vestido de interior, próprio de casa, longo, para uma hora de uma certa tarde, para algumas noites no meu apartamento, sei para quem, agrada-me porque é comprido e leve, e alem disso explica que vou ficar muito tempo em casa, a partir de hoje. Para o provar, não queria que Ivan estivesse aqui, Malina muito menos; por ele não estar, posso olhar-me à vontade no espelho, dou voltas e mais voltas diante do enorme espelho do corredor, a mil léguas, a uma distância abissal, astronómica dos homens. Por uma hora, posso viver fora do tempo e do espaço, verdadeiramente contente, transportada a uma lenda onde o perfume de um sabonete, o ardor duma água-de-colónia, o frufru de roupa interior, o gesto da mão mergulhando borlas na caixa do pó, ou retocando meditativamente uma sobrancelha, são a única realidade. É uma obra que se vai realizando, uma mulher que se cria para um vestido. No mais profundo segredo se esboça de novo o que é uma mulher, pensa-se no começo do mundo, num halo que não dá luz para ninguém. É preciso escovar vinte vezes os cabelos, untarem-se os pés de unhas envernizadas, é preciso depilar pernas e axilas, abrir e fechar o chuveiro, uma nuvem de pó inunda a casa de banho, olha-se no espelho, ainda é domingo, consulta-se o espelho, na parede, talvez já seja domingo.
[Ingeborg Bachmann]
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